Estava conversando com um amigo sobre como é difícil dançar com um demônio em cima de suas costas. Sim, foi por causa da música da Florence que eu falei isso. Sim, eu sou um clichê ambulante e uso músicas pra expressar meus sentimentos. Não encham.

Bom, eu tava ali falando sobre como eu tô aqui sentindo os demônios sassaricando no meu ombro e sussurrando coisas esquisitas pra mim, e meu amigo, que é escritor, falou que o demônio dele parece o Michael Jackson: dança, chuta, vira pantera e uiva na cabeça dele. E com essa descrição eu consegui olhar pro meu demônio e ver como ele era.
O meu demônio parece a Talita. A Talita estudou comigo na escola, no antigo ginásio, aquelas séries entre o primário e o colegial, aqueles anos esquisitos onde você não é criança exatamente, mas ainda faltam uns anos pra você ser um adolescente de fato. Anos onde crescem peitos, vozes engrossam, seus braços e pernas crescem desordenadamente e você tem a graciosidade de um pelicano de maneira geral.
Bom, a Talita era da minha classe, mas era uma cabeça e meia maior que eu. Não que isso seja exatamente raro, do alto do meu metro-e-cinquenta-e-pouco, mas até então era todo mundo meio que do mesmo tamanho, mas a Talita cresceu e eu não.
Eu morria de medo de fazer aula de educação física e jogar contra a Talita, porque ela me batia em campo com o desprendimento de um Serginho Chulapa em direção ao gol. Incontáveis cotoveladas, empurrões e dribles monumentais causavam em mim um sentimento geral de pavor quando ela se aproximava.
E quando eu era sorteada e caía no mesmo time que ela, eu também tinha medo: tinha (e tenho!) o a coordenação motora de um hipopótamo embriadgado, com a compleição física de um esquilo barrigudinho, e minha afinidade com o esporte sempre foi mais de assistir e entender do que saber praticar alguma coisa. Esportes com acessórios como bolas, raquetes e afins são praticamente impossíveis para mim. E a Talita, sabendo disso, ficava esperando que eu errasse o passe ou o arremesso para brigar comigo e me mandar sair da quadra.

Imagem ilustrativa de euzinha praticando esportes coletivos com bola
Eu tinha paúra dessa menina. E não me entenda mal: ela não era má pessoa, eu acho. Mas em quadra, se transformava em um monstro, um demônio determinado a vencer a qualquer custo. Não sei que fim levou a Talita e não me lembro do sobrenome dela para procurar nas redes sociais por aí, mas se fosse apostar, colocaria minhas fichas em “Presidente de Investimentos de Risco” em um banco ou “Diretora de Negócios” em uma multinacional ou algo assim. Talita certamente VENCEU na profissão.
E eu apanhei durante uns anos. O lado bom é que fiquei mais forte a acabava entrando em quadra com medo mesmo (obrigada pela professora, claro) e aprendi a sobreviver a isso. O lado ruim é que a Talita-Demônio ainda mora aqui comigo.
Quando fico insegura é a voz dela que eu ouço dizendo que sou ruim, incapaz, uma porcaria mesmo. E olha, eu vivo insegura. Essa pose de mulher forte é balela, não se enganem: eu sou mesmo uma tonta.
E aí quando aparece uma coisa boa e eu penso “Olha, uma coisa BOA”, lá vem a voz de Tatá dizendo “não confia não que você não sabe fazer isso aí, você já se ferrou mais de uma vez, tá pensando o quê?”
Porque Tatá (somos íntimas, posso chamar ela assim depois de 30 anos ouvindo a voz dela) foi aos poucos se expandindo de uma capetinha que me deixava insegura na aula de handebol pra uma verdadeira demônia full-time, capaz de me cutucar e abalar em qualquer coisa.
E como é difícil dançar quando Tatá está sentada nas minhas costas, rindo de mim, me apontando o dedo. E a bicha não sai, encaixada nos meus ombros bem firme e gritando alto nos meus ouvidos sobre como eu vou falhar de novo.
Prometi pro meu amigo que ia tentar dançar com Talita e tudo. Se ela não vai sair, eu é que tenho que aprender a equilibrá-la, com ajuda dele e de mais uma meia dúzia de três ou quatro pessoas que já estão até usando seus dancin’ shoes a essa hora, de tanto que gostam de mim e querem me dar uma força. E vou aprender a dançar, se é esse o jeito.
Mas ai, Tatá. Você podia ir embora, pra eu nunca mais ver seus cachinhos loiros e seu nariz sardento. Minha vida ia ser bem mais fácil sem sua voz ardida me enchendo o saco. Xô, Tatá. Vai lá comprar uma empresa qualquer e ficar mais milionária e me deixa aqui no cantinho em paz.